9 de janeiro de 2010

ESTAGIANDO



“Vai fazer Direito”, disse meu pai. E cá estou eu, encostado nesse balcão do fórum, esperando a moça do protocolo cadastrar todos os documentos que eu trouxe do escritório.

900 reais. “Um bom começo”. Foi o que pensei há dois anos, quando fiz a entrevista pra conquistar esse estágio. 900 reais. A gente sempre pensa que vale alguma coisa. Pro meu chefe, valho isso.

Apesar que esse fórum aqui não é de todo mal. Tem uma ruiva alta que trabalha lá atrás dos guichês. É gostoso ficar olhando para ela. Ela tem belos peitos. O rosto é bacana também. Pernas compridas, esguias, longelíneas. American way. Pra completar o look tem até a pintinha no canto da boca, tal qual uma Marilyn.

Se bem que ela é mais enxuta que a Marylin. Tá mais pra Débora Secco, talvez. Mas dizem que a Débora é baixinha... a minha ruiva deve ter pelo menos um metro e oitenta. Um e setenta e cinto no mínimo.

Ah, não importa! Uma moça bonita desse jeito não tinha que ficar aqui, escondida nessa sala poeirenta.

Mas agradeço por ela estar aqui. Sou grato a ela por enfeitar a minha visão, me distrair enquanto eu finjo que presto atenção no que essa japonesa sem-graça do protocolo está fazendo com os documentos do meu chefe. Até porque se eu não pudesse olhar para a ruiva, teria que ficar olhando praquele sujeito boçal que me atendeu na semana passada.

Cara ridículo. Grisalho e começando a ficar calvo sobre a testa, tá sempre com a manga da camiseta dobrada pra cima, tentando impressionar com seu bíceps de 30 centímetros. Um bosta.

O pior que o sacana tá sempre com alguma camiseta vermelha, com estampa chamativa. Uma droga isso. Li não sei onde que nossos olhos são atraídos pela cor vermelha, por causa de um instinto qualquer dos nossos antepassados. Esse cara deve ter lido a mesma coisa. Deve ter pensado “usando vermelho, todos vão me olhar e se admirar com o meu porte”.

À merda com os nossos antepassados. Não podiam ter deixado herança melhor?

Ficar vendo esse pateta de camisetinha vermelha tamanho P andando de um lado pro outro faz o meu trabalho ser ainda pior do que ele já é. Eu devia ser indenizado por ter que aturar isso.

E se eu pedisse pro meu chefe um abono por insalubridade a cada vez que eu venho aqui? Tem semana que eu venho pro fórum quase todo dia. Talvez eu passasse a ganhar até uns mil por mês, já pensou?

Se bem nesses dias em que a ruiva tá aqui eu é que devia indenixar meu chefe. Afinal, só a visão daquele decote já seria uma remuneração justa pra esse servicinho.

Coitada da ruiva. Perdendo tempo nesse trampo chato, entocada atrás de um balcão.

Balcão. Meu chefe gosta de um balcão. “Advogado só aprende o que é ser advogado quando encosta o umbigo no balcão do cartório”. Sempre com suas frases prontas, provavelmente saídas do manual de auto-ajuda que ele ganhou junto com as meias marrons no último natal.

Meu chefe é um cara bacana. Nasceu num casebre minúsculo perto da praia e veio pra capital ainda jovem, semi-analfa. Fez um daqueles supletivos por correspondência e se formou em Direito perto dos 30 anos.

Árabe é foda. Os caras são pobres só lá no Oriente Médio. Árabe que sai da terrinha sempre fica rico. Até parece que aquele nariz grande deles fareja dinheiro. Povo do caralho esses árabes. Os caras são bons. Eu queria ser árabe também, igual meu chefe. Daí, talvez, ele me dava um aumento. Ou eu conseguiria farejar dinheiro em outras bandas e parava de me preocupar por causa do meu estágio de 900 reais. Muito louco ser árabe. Eu podia tentar aprender a ser árabe. Será que eu também devo ler algum manual de auto-ajuda?

Meu pai não gosta de auto-ajuda. Diz que é coisa de fracote, de gente que não encara a vida como ela deve ser.

“Vai fazer Direito”, ele me disse em casa, anos atrás, quando, de brincadeira, perguntei pra minha irmã que faculdade ela achava que eu deveria fazer. Eu disse que não gosto de ler.



Meu negócio é matemática. Números. Sim, números. A beleza da sua exatidão, sem dilemas, sem existencialismo, dúvidas ou hesitações. Reta é reta; curva é curva. Um mais um é dois e ponto final. Simples assim.


 – Mas nem tudo é feito de números – ele argumentou. Como você convenceria um cara que bateu no seu carro a pagar pelos estragos somente com a matemática? Recitaria pra ele a tabuada do um ao nove?

 – Posso ser engenheiro.

 – E vai trabalhar onde?

 – Na indústria, claro – eu disse, confiante.

 – Mas na indústria também haverão advogados.

 – Como assim?

 – Oras, todo mundo precisa de advogados, seja pra andar dentro da lei, seja pra se livrar dela – ele falou.




Um baita argumento, pensei. Já quase entregando os pontos, ainda tentei rebater, dizendo que num eventual corte de funcionários os advogados seriam os primeiros dispensados.



 Engenheiros são os responsáveis diretos pela produção. Terão sempre prioridade dentre os demais empregados. Já pensou, eu e meu diploma de advocacia no olho da rua? – arrisquei.

 Sem os advogados a empresa corre o risco de ser processada. Sendo processada, pode vir a falir. Daí tanto engenheiros quanto advogados são dispensados.

  Se todos perderão o emprego, qual a vantagem da faculdade de Direito, então?

 Você pode prestar concursos públicos e não se preocupar mais em ser demitido. Delegado, procurador, fiscal. O leque é amplo.


Merda. Detesto admitir que os outros estão certos. Não sou bom em discussões. Acabo sempre tendo que concordar com os outros. Nem me imagino num tribunal tentando convencer a todos que o réu é inocente. O júri me engoliria vivo.

Eu podia ter usado esse argumento contra meu pai, mas ele já tinha ido lá pra fora dar um jeito no cano do gás. Minhas respostas boas sempre me vêm quando a oportunidade de usá-las já passou. Sou lerdo, penso atrasado. Eu sou um burro, isso sim. Meu pai até que é um cara inteligente. Meio fracassado, talvez, mas inteligente. Só que teve um filho burro e não soube torná-lo esperto. Pensando melhor, será que eu sou burro mesmo? Afinal, se eu fosse um completo idiota, não saberia reconhecer a inteligência em alguém. Nem mesmo em meu pai. Mas que droga! Não consigo convencer nem a mim mesmo em uma discussão.


 
Minha irmã ainda tentou me consolar, perguntando se além de matemática eu gostava da outra matéria na escola. “Genética”, eu respondi. “Você poderia ser médico, então, não é?”. Respondi um “de repente” lacônico. De onde eu tiraria a grana pra faculdade? Medicina é um curso caro. E o consultório, então? Quem montaria um pra mim? Meu pai? Nem se ele vendesse aquela porcaria de Palio 2003 dele.

E cá estou eu no fórum.

“Você faz Direito?” a japonesa me perguntou certa vez. Não, faço Veterinária. Tô aqui nesse fórum caindo aos pedaços, suando dentro dessa camisa quente de micro-fibra (“estilosa”, segundo minha vizinha), tentando encontrar um jumento disfarçado de funcionário público. Quer ser a minha cobaia? “Faço Direito, sim”, respondi, tentando caprichar no sorriso. “Eu queria fazer também, mas faculdade é tão caro, né?” 

Ainda bem que ela não me perguntou nada hoje. Não fui obrigado a ver aqueles dentes acinzentados de quem fuma dois maços por dia.

E a ruiva? Será que fuma?

Nunca fui muito com a cara do cigarro. Dei uns tragos uma vez no cigarro de uma menina. Acho que era carnaval. Mas não me deu barato nenhum. Só bafo. Ainda bem que lá em casa ninguém fuma.

Acho que a ruiva não fuma não. Aqueles lábios fininhos. Não combina.

Ela nem abre a boca enquanto eu fico aqui no caixa do protocolo. Tá sempre de cabeça baixa, analisando os papéis em sua mesa.

Nunca vi seus dentes. Será que são branquinhos? Às vezes ela é banguela e eu nem sei. A boquinha dela é tão pequena que não deve caber aquele arsenal de molares, caninos e incisivos que fazem parte do nosso repertório mandibular.

Já pensou? Eu aqui num fórum empoeirado pagando pau pra uma banguela, ha ha.

E na bolsa dela, será que tem um maço de cigarros escondido atrás do estojo de maquiagem? Ou uma dentadura?

Opa! O que é isso? Ela tá conversando. E com o panaca das camisetinhas agarradas. O idiota deve estar dando em cima dela. Talvez contando que foi na acadimia ontem malhar depois do expediente. E que veio com a camiseta dessa cor pra combinar com os cabelos dela.

Ufa! Ele já saiu de perto dela. Ainda bem. Só uma conversa rápida. Rotina de trabalho, talvez. Não deu pra ver direito a boca dela aberta. Só vi que tinha dentes.

Esse fórum tá paradão hoje, meio vazio. Além da ruiva, não tem mais nada pra ver.

Bem que lá no escritório podiam ter casos maiores, com clientes ricos. Assim eu poderia ir entregar petições lá naquele fórum grandão do Centro.

Aquilo sim que é fórum. Um monte de estagiária gata zanzando pelos corredores. Nossa, o que é aquilo? Coisa de cinema. Uma sucessão interminável de gostosas, todas de óculos, cabelo preso, com terninhos, tailleurs ou jaquetinhas, imponentes e inalcançáveis do alto de seus saltos.

Uma vez eu senti o perfume de uma delas, bem de perto, na fila do guichê. Passei a semana seguinte lhe rendendo homenagens. Só tem gata naquele fórum. Estagiária de Direito é a raça mais tesuda do mundo.

Se bem que na minha classe o mulherio não é tão legal assim. Tem lá uma ou outra patricinha mais ajeitada, mas a média geral não passa de três e meio. E ainda por cima tem aquela gorda ridícula que fez colegial comigo e que, por conta disso, se vê à vontade para puxar papo e me oferecer lanches durante os intervalos das aulas.

Lá no escritório também não é grande coisa. Tem só uma menina realmente bonita. O pior é que ela senta bem na mesa ao lado. Não dá pra olhar pra ela sem dar bandeira.

E eu não quero que ela perceba nada. Mulher que se acha é a pior coisa que existe. Colega de trabalho, então... Por isso evito ao máximo conversar com ela. Cumprimento-a de cabeça baixa. Nunca olho diretamente em seus olhos. Só depois de alguns meses trabalhando a menos de dois metros de distância dela é que eu percebi que seus olhos são castanhos, como os da minha mãe.

No dia-a-dia, o máximo que eu reparo é na cor do esmalte que ela usa. Quando preciso conversar com ela sobre o trabalho eu disfarço olhando para suas mãos enquanto ela segura os papéis.

Teve até uma vez, no dia do aniversário dela, que eu inventei uma desculpa e passei a tarde inteira no fórum da ruiva, só pra não ter que abraçá-la.

Por isso que lá no fórum do Centro é legal. As gatinhas vão e vêm, fazendo toc-toc com seus sapatos pretos e elegantes. Passam tão rápido por mim, com rostos tensos e apressados, que nem reparam que eu estou babando por elas. Tem aquela droga de fila lenta e interminável na hora de entregar os documentos, os pés chegam a ficar ardendo. Também, essa porcaria desse sapato. Ganhei da minha vó, quando entrei na faculdade. Nossa, isso já faz tempo. Tempo. Como o tempo passa rápido. Naquele fórum, então, o tempo voa enquanto se viaja no eterno toc-toc das estagiárias.

Já aqui nesse balcão de merda o tempo não passa. Mais uma tarde inteira perdida, em pé na frente essa japonesa magricela de cabelo curto protocolando os processos. Se eu fosse o juiz presidente desse fórum só colocaria mulheres bonitas pra atender os estagiários. Seria a minha parcela de contribuição para um mundo melhor. Eu posso ser juiz. Sou um bom aluno. E mando bem no estágio. Outro dia eu ouvi o chefe explicando pro estagiário novo o que era prazo prescricional. Eu sei o que é prazo prescricional. Já sabia antes mesmo de entrar no estágio. E sei também o que é tutela antecipada, interpelação extrajudicial e agravo de instrumento. Malditas aulas de Direito Administrativo. Até que aprender esse monte de palavrão me ajudou, afinal de contas. Já consigo fazer uma pré-correção dos ofícios que os outros estagiários redigem. Eles escrevem, eu passo o pente fino e meu chefe dá seus últimos pitacos. Bem que eu podia ser promovido a estagiário-chefe. E ganhar mais de 900 reais.

A ruiva tá com uma cara abatida. Parece cansada. A japonesa também tá cansada. Chego a ter pena dela. O dia inteiro só nisso, protocolando, cadastrando, separando documentos. Milhões de nomes de pessoas que ela nunca viu na vida, não tem idéia de quem sejam. Que lixo esse serviço. Eu também ficaria abatido. Ainda mais se eu fosse uma ruiva gostosa. Só o coroa metido a bombado que continua de lá pra cá, fazendo pose em seu baby look vermelho, esbanjando sorrisos. Parece até que ele tá numa balada ou vendendo coco na praia, tentando a todo custo chamar a atenção daquelas pobres mulheres.

O que que eu tô fazendo aqui?