23 de outubro de 2012

NÃO! A CULPA NÃO É MINHA!



A economia brasileira oscilou um bocado no século XX. Cresceu muito em alguns momentos e despencou em outros, principalmente no final.

Daí vieram os anos 2000 e o Brasil voltou a crescer. E bastante. O desemprego começou a cair. Muitos conseguiram o seu primeiro emprego formal nessa época.

Ao mesmo tempo, a taxa de natalidade do país diminui ano a ano. O Brasil deixou de ser um país de jovens e crianças. Os adultos viraram maioria.

É uma situação interessante. Nunca em toda a sua história o Brasil teve tanta gente trabalhando. E trabalhando em boas condições, com remuneração digna, estável.

Resultado: boa parte população passou a ter condições de investir. Além da tradicional poupança, muitos começaram também a juntar uma graninha para, enfim, garantir sua casa própria.

Esse foi o primeiro problema. O pessoal começou a querer sair do aluguel, ter independência. Só que todo mundo teve a mesma ideia. As casas no bairro em que moravam estavam mais caras do que 10 anos atrás. Muito mais caras.

O jeito foi pesquisar em outros bairros, mais afastados. Vai ficar um pouco mais longe do trabalho e da faculdade, mas tudo bem. Vai demorar mais pra chegar em casa à noite, mas tudo bem. Vai ter que gastar mais tempo pra passear aos fins-de-semana e para visitar os parentes, mas tudo bem. Arrumar vaga na única creche da região será difícil, mas tudo bem.

Tudo bem?

Não, não está tudo bem. Desse jeito a qualidade de vida vai embora. Todo o tempo livre será perdido entre metrô e filas de ônibus.

Mas o que dá pra fazer? Vamos estudar mais, trabalhar mais, produzir mais. Quem sabe assim passamos a ganhar melhor e daí conseguimos uma casa mais bem localizada?

Ainda não foi dessa vez. Todo mundo teve a mesma ideia e os preços explodiram. Seu salário triplicou, mas aquele apartamento simpático de dois quartos no Tatuapé que você viu há alguns anos tá custando meio milhão de reais.

Meio milhão. É muito dinheiro.

O jeito é se conformar. Ficar em um bairro mais longe nem é tão ruim. A vila é tranquila, pessoal trabalhador. Ninguém nunca soube de um assalto na região e a feira de domingo é ótima.

O chato é o metrô lotado. Na ida e na volta. Não tem horário bom, tá sempre cheio, tenso. O pessoal entra empurrando.

A mulher sente mais, é mais frágil. Teve aquela vez em que ela foi empurrada pela multidão e torceu o pé quando as portas do metrô se abriram.

O corpo tava quente, a dor não incomodou na hora. Deu tempo de chegar à estação. Lá ela tinha ainda que pegar mais um ônibus até em casa. E esperou dois, três ônibus na fila, até conseguir entrar no próximo.

No trajeto do ônibus ela deu sorte, conseguiu um lugar pra sentar uns 15 minutos depois de embarcar. Já na cadeira, o pé começou a doer. O corpo esfriou, o resultado foi imediato. Sentia o tornozelo latejar, mas dava pra suportar. Mais meia hora e já estaria em casa.

Na hora de descer, um susto. O degrau do ônibus é alto, tem um buraco na calçada. O pé que estava doendo não aguenta o esforço e torce mais uma vez na hora de pisar no chão.

A dor a essa altura já estava insuportável. Ela sentia o pé inchado, o sapato apertado.

O caminho de meio quarteirão até o prédio de COHAB parece interminável. Mas ela consegue chegar no apartamento com a ajuda do porteiro. Cansada e morta de fome, ela precisa esperar o marido chegar para ajudá-la.

Quando ele chega, às 8 da noite, se assusta com o inchaço do pé da mulher. Tem que ir pro hospital. O mais próximo é uns 5 km dali. Precisam pegar dois ônibus até lá.

Vamos de táxi. Ele telefona no ponto da rua de cima. Naquela hora ninguém mais atende, só em horário comercial. Daí ele tenta o rádio-táxi e a atendente responde que não tem nenhum carro por aquela região da cidade. Não compensa pro motorista ir até lá e fazer só uma corrida.

Não tem mais o que fazer. Precisamos de uma carona. Vai até o porteiro, vê se conhece alguém. Alívio. Um vizinho, cara firmeza, topa levá-los ao pronto-socorro.

Depois de anestesiada, o pé dela é enfaixado. Quando estão voltando de táxi (perto do hospital havia um ponto 24hs), ele decide: precisa de um carro. A sensação de impotência naquelas últimas horas, a dor e o desespero no rosto da mulher, tudo aquilo mexeu demais com ele.

Já estava na hora, afinal. Ele tá com 30 anos e um salário razoável. Por que não?

Dizem que o governo tornou as coisas mais fáceis, qualquer um podia comprar um carro no Brasil. Mas ele percebeu que se parcelasse em 60 vezes daria pra pagar quase duas vezes o preço. Aliás, que preço, hein? 30 mil reais por um carro pequeno, comum.

Mas foi esse o jeito. Diante das circunstâncias, não ter o carro é pior do que gastar com ele. Foi lá e comprou. Ter uma caranga facilitaria, inclusive, naqueles dias em que ele tem pós-graduação e volta pra casa mais tarde.

Aliás, outro dia na aula o professor falou que o ideal seria que as pessoas optassem pelo transporte público. Se a frota de carros continuar crescendo, o trânsito só vai piorar.

Trânsito. Ele começou a pensar com seus botões. Ele e a mulher moram longe de tudo, mas não deveriam ter carro porque o carro deles faz o trânsito piorar. E não é só o trânsito. Um carro a mais na rua gera mais poluição e aumenta o risco de acidentes.

Eles poderiam morar num bairro melhor e não precisar do carro, claro. Só que é tudo caro demais. Muito mais do que eles conseguem pagar.

Mas é a lei do mercado. Oferta e demanda, né?

Já sei! E se a oferta de imóveis aumentasse? Não reduziria os preços?

Nem pensar! Ele se lembrou daquela aula de urbanismo. O texto falava que o grande problema é a verticalização dos bairros. Casas térreas, históricas, sendo demolidas para dar lugar a prédios e condomínios. Uma concentração absurda de gente, criando ainda mais trânsito, mais barulho, poluição, trânsito, filas no supermercado, lotação nas lojas, etc. Absurdo!

Temos aí uma conclusão bastante curiosa. As pessoas têm a oportunidade de subir de vida, trabalhando e estudando, mas a opinião pública diz que o aumento do padrão de vida delas é responsável pela catástrofe urbana.

Não pode construir nada nos bairros centrais, porque isso aumenta a verticalização dessas áreas e a concentração de pessoas. Essas pessoas devem morar longe do centro. Mas elas não podem ter carro também, pra não piorar o trânsito.

Portanto, o governo deve agir em duas frentes: diminuir o acesso ao crédito (onde já se viu parcelar carro em 60 vezes?) e impedir a construção de prédios residenciais em regiões bem localizadas (esse pessoal da periferia que fique por lá).

Na minha terra, isso se chama eugenismo. Ou gulag.

Faz 6 anos que vim pra São Paulo. Por enquanto, ao invés de Paulicéia, só encontrei Piratininga.

18 de outubro de 2012

COXINHA, COMO NÃO SÊ-LO?



O pessoal adora pegar no pé deles. Os coxinhas. Traduzindo: Aqueles caras que tão sempre arrumadinhos, com cabelos penteados de um jeito tradicional e se vestem de forma discreta. Tentam passar a impressão de bons moços, com barba feita (ou muito bem aparada) e gesticulam pouco.

Cito alguns famosos como exemplo: Luciano Huck, Britto Jr. e Thiago Leifert.

Me chamaram de coxinha esses dias. Logo de cara eu achei que foi um insulto. Mas não, foi apenas um comentário.

Fui pra frente do espelho conferir.

Não tenho um corpo de deus grego, não dá pra andar por aí com roupa justa ou larga demais. Fico parecendo um bandido se me visto com alguma camiseta de banda de rock. Acessórios também não são o meu forte, não sei escolher direito e não acho que combinem comigo.
 
Só tento não errar. Para isso, a inevitável camisa pólo da Lacoste.

Um cabelo pouco amigável e uma barba repleta de falhas também não me permitem muitas variações no visual. Ser básico acaba sendo a única opção viável.

Tenho uma qualidade: Resisto bravamente ao sapatênis. Ainda não me convenceram que algo que “combina com tudo” pode ser correto.

Enfim, a essa altura do campeonato, melhor ser coxinha do que um pastel.

15 de outubro de 2012

A MICROSOFT CAUSOU UM GRANDE MAL À HUMANIDADE – MAS AINDA PODE SE REDIMIR




A Microsoft foi a grande responsável pela popularização dos computadores pessoais em todo o mundo. Uns falam da IBM, outros da Apple, mas não tem pra ninguém; foi Bill Gates com seu Windows que pegou na mão do cidadão comum e o apresentou às maravilhas da informática.


Isso lá no começo dos anos 90.

Só que isso foi um erro. Um erro da Microsoft e das outras empresas de tecnologia da época, que deveriam ter sido mais competentes e capazes de fornecer um produto melhor que o Windows. Ou minimamente competitivo. Ou que simplesmente funcione direito. Só.

Mas não foi isso que ocorreu. E o que houve? Todo mundo comprou o Windows (era o que tinha) e ele se tornou o padrão do mercado.

Daí tudo (tudo!) relacionado a processamento de sons e/ou imagens, pra parecer familiar aos olhos do usuário, ficou parecido com o Windows. Tudo.

O problema é que o Windows é um sistema ruim, feito a partir de uma concepção errada de que tudo deve ser customizável e adaptável. O resultado é essa colcha de retalhos, repleta de improvisos, em que os programas são capengas, funcionam de forma imprevisível e os dados são amontoados de qualquer jeito.
 
Exportar o padrão Windows para outros dispositivos, logicamente, fez com que esses aparelhos passassem a apresentar os mesmos vícios & defeitos.

Quer ter internet no computador? Instale e configure o modem. Quer um drive? Instale, configure e baixe as certificações necessárias. Quer ter wi-fi em casa? Configure a rede, instale o roteador e atualize o sistema. Impressora? Instale o dispositivo e o programinha inútil cheio de figurinhas que vem com ele e faça a certificação online da garantia. Quer plugar sua máquina fotográfica digital pra guardar suas fotos? Instale os drivers da câmera e reze pra ser compatível com a versão atual do seu sistema. Quer usar um mísero pen-drive? Idem acima.

O resultado: Qualquer tarefa que você for fazer diante de um computador virou uma guerra perdida contra o tempo. A velocidade de processamento prometida pela informática passou a ser compensada, com folga, pelo desperdício de horas que você passa convencendo a máquina a fazer aquilo que você tá pedindo que ela faça.

Mas a praga devoradora de horas não ficou restrita aos PCs e seus periféricos. Ela se alastrou para outros eletroeletrônicos e agora celulares, vídeo-games, aparelhos de música, TVs e outros passaram a lhe exigir tempo para formatar, verificar, padronizar, certificar, etc. Igualmente, todos passaram a apresentar os vícios do velho Windows.

Você quer falar com alguém pelo celular? Precisa antes customizá-lo. Quer jogar um game pra se distrair? Tem que configurar ou carregar as suas pré-configurações. Tá afim de ouvir música? Antes, você deve verificar as atualizações do seu player. E colocar aquele filminho legal pra rodar na TV? Confira se o codec de áudio e vídeo é compatível com o aparelho.

Ou seja, exatamente todo aquele tempo que você perde quando está no computador, esperando ele carregar as benditas atualizações, configurações, etc., agora também será perdido quando você estiver diante de um eletroeletrônico qualquer.

Eu imagino o sadismo das pessoas responsáveis por isso.


Ahá! Esse idiota quer se comunicar com alguém ou se distrair? Pois ele terá que dar boot em tudo, atualizar sempre que for usar o aparelho e carregar todas as configurações pré-definidas só para ligá-lo. Ainda não conseguimos fazer o cretino passar por isso quando ele abre a torneira ou acende a lâmpada, mas a gente chega lá. Chegaremos ao dia em que pra cortar um pedaço de pão o pobre coitado precisará configurar a faca, instalar o driver do cabo, customizar a lâmina e realizar a certificação digital da fatia antes de passar a manteiga (desde que, lógico, esta seja compatível com o formato do arquivo fatia.pao)”.


O Windows ser ruim é um problema mesmo. Só que o problema maior é que nos acostumamos com sua ruindade. Todo mundo toma esse padrão xexelento como normal, uma fatalidade inescapável, e tenta conviver com isso.

Só que esse conformismo é perigoso. Não é normal um produto que custa centenas ou milhares de reais não funcionar direito. Não é normal. Não pode ser normal. Não por esse preço.

Vamos brincar de matemática. Some o preço de cada um dos itens que eu citei lá em cima. Computador, impressora, vídeo-game, televisão, celular, aparelho de som, câmera, etc. O resultado dá vários milhares de reais. Daria pra comprar um carro com esse valor. Um carro! Uma tecnologia quase ancestral hoje em dia, mas concebido em uma época em que produtos eram feitos pra funcionar direito.

Quer comparar?

Imagine você lá, guiando tranquilamente seu carro numa estrada, a 100 km/h, daí você toma uma fechada de alguém e ao pisar no freio aparece no para-brisa a mensagem “Esse dispositivo executou uma ação inesperada e seu funcionamento será interrompido. Enviar relatório de erros? [SIM] ou [NÃO]”. Deve ser emocionante.

Por isso que digo que a Microsoft casou um mal à humanidade. É uma empresa que incutiu na cabeça de todo mundo que ser medíocre é OK, que não tem problema conceber produtos ruins e que não funcionem.

Mas acho que tem como a Microsoft se redimir, ao menos em parte, por todo esse mal. Basta que nas próximas versões do Power Point ela limite o número de caracteres por slide. Digamos, 140 caracteres por slide, já que todo mundo tá acostumando com padrão do Twitter mesmo. Isso não resolveria os problemas da humanidade, mas seria um bom começo. Eliminaria aquelas apresentações horrorosas em que o palestrante fica de costas pra plateia lendo o texto que sai do projetor.

Bill Gates, agora é contigo!

10 de outubro de 2012

TODO MUNDO ODEIA O CRIS OU NINGUÉM SABE O QUE FAZER COM ELE?



Na semana em que foi empossado o primeiro presidente negro da história do STF, Joaquim Barbosa, é difícil não tocar no assunto.

Lógico que fiquei contente. Assim como também fiquei quando o Obama foi pra Casa Branca. Mas não contente daquele tipo “oba, agora ‘eles’ vão ter que nos engolir e nos dar valor”. Nada disso.

A entrada desses dois negros no poder só confirma uma impressão que tenho há algum tempo: o mercado não sabe o que fazer com os negros e os empurra ao serviço público.

Há alguns anos, quando vim pra São Paulo trabalhar no Governo, entrei pela primeira vez em uma repartição, próxima à Praça da Sé. Minha primeira impressão: muitas mulheres, várias delas negras.

Hoje já me acostumei. Trabalho em um prédio bacana, espelhado, nos Jardins, a duas quadras da Av. Paulista e minha diretora é mulher. E negra. Estou satisfeito com isso.

Mas eu tentei trabalhar no mercado. Juro que tentei. Bancos, financeiras, corretoras, consultorias, multinacionais. Todos receberam meu curriculum de economista. E olha que lá consta a minha graduação numa universidade reconhecida, das melhores do país, que está sempre na parte de cima dos rankings feitos por aí. Isso é o que eles dizem.

Não virou nada, lógico. Eu não tinha perfil, lógico. Isso é o que eles dizem.

O caso mais interessante em que fui recusado aconteceu numa seleção do Itaú. Fui concorrer a uma vaga daquilo que eles chamam de trainee. O pacote era completo: terno obrigatório, dinâmica de grupo, palestra motivacional, apresentações cronometradas, briefing feito com cartolina sentado no chão e todas aquelas formas de constrangimento conhecidas.

A recrutadora era uma loirinha bonita e simpática. Devia ter no máximo uns 3 anos a mais que eu. Ela pareceu o tempo todo muito curiosa a meu respeito.

Primeiro ela estranhou o meu sotaque. Você é paulista mesmo?

Depois ela perguntou se eu havia estudado em colégio público. Respondi que não e ela fez a mesma cara que uma mãe faz quando sabe que o filho está escondendo alguma travessura.

Ao fim da dinâmica, ela pediu pra cada um contar seu “diferencial” para a empresa. Eu disse que gosto de ler, tenho facilidade com línguas e que convivo bem com gente de qualquer origem social, já que na minha família tem de tudo um pouco.


Foi a deixa que a recrutadora estava esperando. Primeiro ela perguntou como era a casa em que eu cresci. Disse que era normal. Pai, mãe, irmã, três quartos, quintal com grama, sacada com rede (quando mudamos para um apartamento), TV em cada quarto, aparelho de som na sala, vídeo-game, empregada, livros e gibis na estante, etc. Ela disse que eu podia me soltar e não precisava esconder nada.

A essa altura eu já havia sacado onde ela queria chegar. Tentei me defender e disse que meus pais davam aula numa universidade federal, enfatizando o “federal”. Ela fingiu que acreditou e passou a fazer perguntas pra outro candidato.

Minutos depois ela separa a turma em dois grupos. Um grupo permanece na sala, outro é dirigido a um corredor ao lado. Eu era do grupo que foi pro corredor.

Estava fora, claro. Mas a recrutadora ainda fazia uma entrevista reservada com cada um dos excluídos, pra ver se o sujeito tinha algo interessante a dizer e ainda conseguir uma segunda chance. Uma espécie de repescagem.

Na minha vez, ela perguntou o que eu havia achado do processo. Falei que não esperava tantas perguntas pessoais, mas que tentei responder a tudo de forma sincera, afinal não tinha nada a esconder.

Foi a segunda deixa que eu dei pra recrutadora naquela tarde.

Ela: Você devia ter aproveitado melhor os seus diferenciais. Eu te fiz  perguntas pessoais exatamente pra você poder se destacar dos outros candidatos.

Eu: Não entendi. Como assim, me destacar?

Ela: Você devia falar sobre as suas origens, a sua vivência, você é diferente, devia ter falado mais sobre isso, usar a seu favor.

Eu: Diferente em quê? Todos aqui estudaram no mesmo tipo de escola, fizeram o mesmo tipo de faculdade, temos padrão de vida mais ou menos igual, com famílias parecidas, com gostos parecidos. No que eu sou diferente?

Ela: Não sei. Você tinha que ter usado isso, Álvaro. Suas origens...

Já não havia mais nada a ser dito. Recolhi meu paletó e fui embora.

Eu nunca fui a favor das cotas raciais em nossas universidades. Mas claro que depois desse episódio eu passei a ser totalmente contra, já que simplesmente não fazem sentido. Ser preto com um diplomão na parede não te garante nada.

Alguns anos se passaram daquela entrevista de emprego. Mais recentemente começaram a transmitir no Brasil o seriado “Todo Mundo Odeia o Cris”, em que o protagonista, um garotinho negro de boa família, estuda num colégio de brancos em Nova York.

Dou muitas e boas risadas com os comentários de uma das professoras do garoto, a Senhorita Morello. Inocente, ela sempre diz coisas como “Cris, os seus colegas irão fazer lembrancinhas pra entregar no Dia dos Pais, mas eu sei que seu pai está preso e assim você não precisa participar se não quiser, tudo bem?”. Ou “Cris, se quiser pode chegar atrasado de vez em quando, eu sei que a sua mãe é viciada em crack e isso deve tomar muito tempo seu e dos seus 17 irmãos”.

Embora seja uma caricatura, sempre que vejo a Senhorita Morello na TV eu me lembro da loirinha que me barrou naquela seleção de emprego do Itaú. Elas são a imagem perfeita de um sistema que simplesmente não sabe lidar comigo.

5 de outubro de 2012

A DOR DO OLHAR


 
Ela era bonita. Linda. Demais. A ponto de me constranger. Perto dela eu ficava sem reação. Mal conseguia olhar nos seus olhos ou respondê-la quando me perguntava algo.

 
Num dia comum de trabalho eu evitaria puxar papo. Sei que ficaria travado a ponto de parecer burro ou grosseiro. Mas esse fim de tarde de inverno estava excepcionalmente agradável. Um ar fresco sem ser gelado.

O salão estava cheio, mas acabamos sozinhos naquela mesa de canto. Depois de algumas taças de vinho, pedi ao garçom um chocolate quente. Queria acalmar o hálito. Era a minha chance de conversar com ela.

Sempre quis perguntar o que uma mulher desse nível sentia ou pensava a respeito da sua beleza. Sentiam orgulho? Sabiam que chegavam a incomodar alguns de nós, pobres mortais? Ou caíam na vala comum, com aquele pensamentozinho medíocre de “todos têm inveja de mim”?

Contei uma piadinha, ela riu. Chegou o momento de saciar a minha curiosidade.



– Você tem noção do quanto é bonita? – perguntei, sorrindo.

– Oras, como assim? – ela respondeu, após uma risadinha simpática.

– É sério. Você não é do tipo que a gente vê todo dia.

– Hum... não sei. O que espera que eu responda?


 
Não esperava por essa. Só tive tempo de fazer um som sem abrir a boca antes de pegar a xícara na mão. Tomei um gole de chocolate e retomei a conversa, sorrindo e tentando parecer calmo.



– Acho que eu gostaria que me dissesse que você sabe que a sua beleza traz problemas. Traz problemas a todos que estão em volta de você.

– Minha beleza traz problemas? Haha. Essa é boa. Que tipo de problemas?

– Ah, você sabe. Tipo, o pessoal passa mal ao ver uma mulher tão bonita.

– “Tipo”, o pessoal tem inveja do meu jeito, isso sim – ela respondeu, fechando um pouco a cara, mas ainda simpática.

– Não. Não é inveja. É outra coisa. Todo mundo sabe que uma mulher como você vive em outro nível. É outra categoria. Sua vida não é igual à de gente comum. Você é diferente, provoca a gente de um jeito diferente.

– Tá bom. Então eu vou imaginar que isso é verdade. Por que que isso traz problemas?

– É mais ou menos... como eu posso explicar? É como todo mundo soubesse que você tá acima de tudo.

– Do que você tá falando? Acima do quê?

– Acima de tudo. Não sei como dizer. E como se você tivesse outras oportunidades. Oportunidades que a gente nem sonha em ter.

– “A gente” quem, cara? Isso pra mim é só inveja.


– Não, não, não!



A essa altura eu já havia alterado a minha voz, a última coisa que eu queria fazer. Peguei a xícara mais uma vez. O chocolate já estava mais frio do que eu gostaria. Mas tentei caprichar na voz, deixá-la mais macia.



– Eu quero dizer é que quando alguém olha pra você se sente mal. Mas isso não é inveja.  É mais ou menos como, sei lá, olhar pro Pelé e saber que nunca vai jogar que nem ele. É tipo olhar pra dentro de você mesmo e ver que não tem nada demais, que você é só uma pessoa comum, com essa vidinha simples, sem graça. Mas você, não. Você chama a atenção. Tudo em você brilha. Você atrai olhares. Você parece que pode fazer tudo, ter tudo. Você tem autoridade.

– “Autoridade”, é? Essa é nova – ela tornou a rir, para minha surpresa. – Enfim, continuo sem saber do que você tá falando.

– Eu tô querendo dizer que você é bonita demais. É muito mais do que qualquer um pode sonhar. Não dá nem pra imaginar como é ter você do lado.

– Não dá pra imaginar?

– Não, não dá. Parece que só você tem direito a alguma coisa. Alguma coisa diferente. Uma coisa que não é permitida ao resto das pessoas.

– Cê tá louco. O que não é permitido pro resto das pessoas? Do que cê tá falando?

– Tudo não é permitido. Só você pode fazer o que quiser. E é isso que deixa a gente ressentido, como se a gente fosse proibido de viver uma parte importante da vida. Mesmo que você não tenha culpa, parece que você tá roubando isso da gente.

– Nossa, eu fiz o quê? Eu não roubei nada, eu não fiz nada. Olha, eu não vou ficar aqui parada escutando isso.

– Não! Por favor. Não foi isso que eu quis dizer. Eu só quis te falar que você é bonita. Sim, bonita. Bonita demais. Deixa a gente com um certo complexo. De inferioridade, sabe? Dá a impressão que a sua vida é mais interessante. Todo mundo queria estar na sua pele pra experimentar isso que você vive, tentar levar a vida de outra forma. De um jeito mais leve, tranquilo, sei lá.

– OK. Então me responda: isso não é inveja?

– Mas... Mas eu não tô falando que as pessoas não sentem inveja de você. É que... Veja bem, não é só isso, entendeu? Não é só inveja.

– Não é, né? Então, senhor “veja bem”, eu tô há três horas te ouvindo falar um monte de abobrinha. Eu nunca pensei que você fosse tão mal educado. Um moço sério, calado. Não entendi nada, por que você me chamou aqui, o que que eu te fiz?

– Não! Você não fez nada. É que você... Você é uma em um milhão. Todo mundo passa a vida inteira sem poder aproveitar. Ninguém aproveita nada. Só você aproveita tudo, consegue tudo, leva tudo. A gente não fica com nada. É chato. A gente te olha e parece que não tem nada.

– Isso é inveja. Só que em vez de dizer isso de uma vez você tá aí enrolando, querendo dizer não sei o quê.

– É que não é só inveja, caramba. Não é possível. Você não percebe? Olha o que você causa na gente. Não é possível que você não percebe isso. Olha como você espanta todo mundo. Todo mundo te olha e fica com medo. É isso, medo. Você dá medo nas pessoas. Você é tão bonita que dá medo. Você chega e todo mundo esquece do resto. Todo mundo larga aquilo que tava fazendo. Todo mundo começa a reparar em você, no que você tá fazendo. Todo mundo fica tentando adivinhar o que você está pensando, o que você vai fazer. Todo mundo imagina como é a sua vida, como é que você passa o dia, se passa alguma dificuldade, se fica chateada de vez em quando, se chora, se fica com frio, se sente dor de cabeça. Tudo pra você deve ser fácil. Você deve ganhar presentes, ser paquerada todo dia. É só você pedir que te dão tudo. É só você querer e pronto. Todo mundo te dá tudo, te dá o mundo. Sua vida deve ser fácil, tudo é simples, tudo é fácil, tranquilo. Tudo pra você é fácil. Pra gente é tudo sempre tão difícil. Eu fico aqui, falando isso, tendo vergonha de falar com você. Eu não sei mais o que eu quero falar. Você fica aí, sem se mexer, eu não sei o que você tá pensando. Eu nunca sei nada de você. Você só fica aí. Você só fica...



Eu tinha falando demais. Eu precisava mesmo parar. Mas não desse jeito, de repente. Sem palavras, sem fôlego. O sol já estava se pondo, mas eu suava sem parar. Desfiz o nó da gravata e fiquei em pé.

Queria ir pra fora, fumar um cigarro. Quando me virei pra sair, ela pergunta:


– Termina o que você tava falando. Você acha que eu fico como?

– Foi isso que eu pensei em te perguntar.

– Nem lembro mais a sua pergunta. O que que foi mesmo?

– Eu queria saber se você tem ideia do quanto é bonita. Queria saber se você se dá conta dessa coisa, dessa reação que você desperta nas pessoas.

– Acho que as pessoas têm inveja de mim. Só isso.



Ela se levantou da cadeira. Ficamos em pé, um na frente do outro, parados por alguns instantes. O salão já estava bem menos cheio do que quando começamos nossa conversa. Ela pegou a bolsa e deu um passo em direção à porta. Alcancei seu braço e fiz uma última pergunta.

 

– Você não percebe o quanto é linda?

– Você só disse isso desde que eu cheguei aqui.

– Você é tão bonita que chega a doer, sabia?

– Tô indo embora.



Dei tchau. Ela me olhou de canto de olho, ajeitou a bolsa no ombro e só respondeu – Tchau.

Queria ter pedido um beijo pra ela.