A
economia brasileira oscilou um bocado no século XX. Cresceu muito em alguns
momentos e despencou em outros, principalmente no final.
Daí
vieram os anos 2000 e o Brasil voltou a crescer. E bastante. O desemprego
começou a cair. Muitos conseguiram o seu primeiro emprego formal nessa época.
Ao
mesmo tempo, a taxa de natalidade do país diminui ano a ano. O Brasil deixou de
ser um país de jovens e crianças. Os adultos viraram maioria.
É
uma situação interessante. Nunca em toda a sua história o Brasil teve tanta
gente trabalhando. E trabalhando em boas condições, com remuneração digna,
estável.
Resultado:
boa parte população passou a ter condições de investir. Além da tradicional
poupança, muitos começaram também a juntar uma graninha para, enfim, garantir
sua casa própria.
Esse
foi o primeiro problema. O pessoal começou a querer sair do aluguel, ter
independência. Só que todo mundo teve a mesma ideia. As casas no bairro em que
moravam estavam mais caras do que 10 anos atrás. Muito mais caras.
O
jeito foi pesquisar em outros bairros, mais afastados. Vai ficar um pouco mais
longe do trabalho e da faculdade, mas tudo bem. Vai demorar mais pra chegar em
casa à noite, mas tudo bem. Vai ter que gastar mais tempo pra passear aos
fins-de-semana e para visitar os parentes, mas tudo bem. Arrumar vaga na única
creche da região será difícil, mas tudo bem.
Tudo
bem?
Não,
não está tudo bem. Desse jeito a qualidade de vida vai embora. Todo o tempo
livre será perdido entre metrô e filas de ônibus.
Mas
o que dá pra fazer? Vamos estudar mais, trabalhar mais, produzir mais. Quem
sabe assim passamos a ganhar melhor e daí conseguimos uma casa mais bem
localizada?
Ainda
não foi dessa vez. Todo mundo teve a mesma ideia e os preços explodiram. Seu
salário triplicou, mas aquele apartamento simpático de dois quartos no Tatuapé
que você viu há alguns anos tá custando meio milhão de reais.
Meio
milhão. É muito dinheiro.
O
jeito é se conformar. Ficar em um bairro mais longe nem é tão ruim. A vila é
tranquila, pessoal trabalhador. Ninguém nunca soube de um assalto na região e a
feira de domingo é ótima.
O
chato é o metrô lotado. Na ida e na volta. Não tem horário bom, tá sempre
cheio, tenso. O pessoal entra empurrando.
A
mulher sente mais, é mais frágil. Teve aquela vez em que ela foi empurrada pela
multidão e torceu o pé quando as portas do metrô se abriram.
O
corpo tava quente, a dor não incomodou na hora. Deu tempo de chegar à estação. Lá
ela tinha ainda que pegar mais um ônibus até em casa. E esperou dois, três
ônibus na fila, até conseguir entrar no próximo.
No
trajeto do ônibus ela deu sorte, conseguiu um lugar pra sentar uns 15 minutos
depois de embarcar. Já na cadeira, o pé começou a doer. O corpo esfriou, o
resultado foi imediato. Sentia o tornozelo latejar, mas dava pra suportar. Mais
meia hora e já estaria em casa.
Na
hora de descer, um susto. O degrau do ônibus é alto, tem um buraco na calçada.
O pé que estava doendo não aguenta o esforço e torce mais uma vez na hora de
pisar no chão.
O
caminho de meio quarteirão até o prédio de COHAB parece interminável. Mas ela
consegue chegar no apartamento com a ajuda do porteiro. Cansada e morta de
fome, ela precisa esperar o marido chegar para ajudá-la.
Quando
ele chega, às 8 da noite, se assusta com o inchaço do pé da mulher. Tem que ir pro
hospital. O mais próximo é uns 5 km dali. Precisam pegar dois ônibus até lá.
Vamos
de táxi. Ele telefona no ponto da rua de cima. Naquela hora ninguém mais
atende, só em horário comercial. Daí ele tenta o rádio-táxi e a atendente
responde que não tem nenhum carro por aquela região da cidade. Não compensa pro
motorista ir até lá e fazer só uma corrida.
Não
tem mais o que fazer. Precisamos de uma carona. Vai até o porteiro, vê se
conhece alguém. Alívio. Um vizinho, cara firmeza, topa levá-los ao
pronto-socorro.
Depois
de anestesiada, o pé dela é enfaixado. Quando estão voltando de táxi (perto do
hospital havia um ponto 24hs), ele decide: precisa de um carro. A sensação de
impotência naquelas últimas horas, a dor e o desespero no rosto da mulher, tudo
aquilo mexeu demais com ele.
Já
estava na hora, afinal. Ele tá com 30 anos e um salário razoável. Por que não?
Dizem
que o governo tornou as coisas mais fáceis, qualquer um podia comprar um carro
no Brasil. Mas ele percebeu que se parcelasse em 60 vezes daria pra pagar quase
duas vezes o preço. Aliás, que preço, hein? 30 mil reais por um carro pequeno, comum.
Mas
foi esse o jeito. Diante das circunstâncias, não ter o carro é pior do que
gastar com ele. Foi lá e comprou. Ter uma caranga facilitaria, inclusive,
naqueles dias em que ele tem pós-graduação e volta pra casa mais tarde.
Aliás,
outro dia na aula o professor falou que o ideal seria que as pessoas optassem pelo
transporte público. Se a frota de carros continuar crescendo, o trânsito só vai
piorar.
Trânsito.
Ele começou a pensar com seus botões. Ele e a mulher moram longe de tudo, mas
não deveriam ter carro porque o carro deles faz o trânsito piorar. E não é só o
trânsito. Um carro a mais na rua gera mais poluição e aumenta o risco de
acidentes.
Eles
poderiam morar num bairro melhor e não precisar do carro, claro. Só que é tudo
caro demais. Muito mais do que eles conseguem pagar.
Mas
é a lei do mercado. Oferta e demanda, né?
Já
sei! E se a oferta de imóveis aumentasse? Não reduziria os preços?
Nem
pensar! Ele se lembrou daquela aula de urbanismo. O texto falava que o grande
problema é a verticalização dos bairros. Casas térreas, históricas, sendo
demolidas para dar lugar a prédios e condomínios. Uma concentração absurda de
gente, criando ainda mais trânsito, mais barulho, poluição, trânsito, filas no
supermercado, lotação nas lojas, etc. Absurdo!
Temos
aí uma conclusão bastante curiosa. As pessoas têm a oportunidade de subir de
vida, trabalhando e estudando, mas a opinião pública diz que o aumento do
padrão de vida delas é responsável pela catástrofe urbana.
Não
pode construir nada nos bairros centrais, porque isso aumenta a verticalização
dessas áreas e a concentração de pessoas. Essas pessoas devem morar longe do
centro. Mas elas não podem ter carro também, pra não piorar o trânsito.
Portanto,
o governo deve agir em duas frentes: diminuir o acesso ao crédito (onde já se
viu parcelar carro em 60 vezes?) e impedir a construção de prédios residenciais
em regiões bem localizadas (esse pessoal da periferia que fique por lá).
Na
minha terra, isso se chama eugenismo. Ou gulag.
Faz
6 anos que vim pra São Paulo. Por enquanto, ao invés de Paulicéia, só encontrei
Piratininga.