Ela era
bonita. Linda. Demais. A ponto de me constranger. Perto dela eu ficava sem
reação. Mal conseguia olhar nos seus olhos ou respondê-la quando me
perguntava algo.
Num dia
comum de trabalho eu evitaria puxar papo. Sei que ficaria travado a ponto de
parecer burro ou grosseiro. Mas esse fim de tarde de inverno estava
excepcionalmente agradável. Um ar fresco sem ser gelado.
O salão
estava cheio, mas acabamos sozinhos naquela mesa de canto. Depois de algumas
taças de vinho, pedi ao garçom um chocolate quente. Queria acalmar o hálito.
Era a minha chance de conversar com ela.
Sempre quis
perguntar o que uma mulher desse nível sentia ou pensava a respeito da sua
beleza. Sentiam orgulho? Sabiam que chegavam a incomodar alguns de nós, pobres
mortais? Ou caíam na vala comum, com aquele pensamentozinho medíocre de “todos
têm inveja de mim”?
Contei uma
piadinha, ela riu. Chegou o momento de saciar a minha curiosidade.
– Você tem
noção do quanto é bonita? – perguntei, sorrindo.
– Oras, como
assim? – ela respondeu, após uma risadinha simpática.
– É sério.
Você não é do tipo que a gente vê todo dia.
– Hum... não
sei. O que espera que eu responda?
Não esperava
por essa. Só tive tempo de fazer um som sem abrir a boca antes de pegar a
xícara na mão. Tomei um gole de chocolate e retomei a conversa, sorrindo e tentando
parecer calmo.
– Acho que
eu gostaria que me dissesse que você sabe que a sua beleza traz problemas. Traz
problemas a todos que estão em volta de você.
– Minha
beleza traz problemas? Haha. Essa é boa. Que tipo de problemas?
– Ah, você
sabe. Tipo, o pessoal passa mal ao ver uma mulher tão bonita.
– “Tipo”, o
pessoal tem inveja do meu jeito, isso sim – ela respondeu, fechando um pouco a
cara, mas ainda simpática.
– Não. Não é
inveja. É outra coisa. Todo mundo sabe que uma mulher como você vive em outro
nível. É outra categoria. Sua vida não é igual à de gente comum. Você é diferente,
provoca a gente de um jeito diferente.
– Tá bom. Então
eu vou imaginar que isso é verdade. Por que que isso traz problemas?
– É mais ou
menos... como eu posso explicar? É como todo mundo soubesse que você tá acima
de tudo.
– Do que
você tá falando? Acima do quê?
– Acima de
tudo. Não sei como dizer. E como se você tivesse outras oportunidades.
Oportunidades que a gente nem sonha em ter.
– “A gente”
quem, cara? Isso pra mim é só inveja.
A essa
altura eu já havia alterado a minha voz, a última coisa que eu queria fazer. Peguei
a xícara mais uma vez. O chocolate já estava mais frio do que eu gostaria. Mas
tentei caprichar na voz, deixá-la mais macia.
– Eu quero
dizer é que quando alguém olha pra você se sente mal. Mas isso não é inveja. É
mais ou menos como, sei lá, olhar pro Pelé e saber que nunca vai jogar que nem
ele. É tipo olhar pra dentro de você mesmo e ver que não tem nada demais, que
você é só uma pessoa comum, com essa vidinha simples, sem graça. Mas você, não.
Você chama a atenção. Tudo em você brilha. Você atrai olhares. Você parece que
pode fazer tudo, ter tudo. Você tem autoridade.
–
“Autoridade”, é? Essa é nova – ela tornou a rir, para minha surpresa. – Enfim,
continuo sem saber do que você tá falando.
– Eu tô
querendo dizer que você é bonita demais. É muito mais do que qualquer um pode
sonhar. Não dá nem pra imaginar como é ter você do lado.
– Não dá pra
imaginar?
– Não, não
dá. Parece que só você tem direito a alguma coisa. Alguma coisa diferente. Uma coisa
que não é permitida ao resto das pessoas.
– Cê tá
louco. O que não é permitido pro resto das pessoas? Do que cê tá falando?
– Tudo não é
permitido. Só você pode fazer o que quiser. E é isso que deixa a gente
ressentido, como se a gente fosse proibido de viver uma parte importante da
vida. Mesmo que você não tenha culpa, parece que você tá roubando isso da gente.
– Nossa, eu fiz o quê? Eu não roubei nada, eu não fiz nada. Olha, eu não vou ficar aqui parada escutando
isso.
– Não! Por
favor. Não foi isso que eu quis dizer. Eu só quis te falar que você é bonita. Sim,
bonita. Bonita demais. Deixa a gente com um certo complexo. De inferioridade, sabe?
Dá a impressão que a sua vida é mais interessante. Todo mundo queria estar na
sua pele pra experimentar isso que você vive, tentar levar a vida de outra forma.
De um jeito mais leve, tranquilo, sei lá.
– OK. Então
me responda: isso não é inveja?
– Mas... Mas
eu não tô falando que as pessoas não sentem inveja de você. É que... Veja bem,
não é só isso, entendeu? Não é só inveja.
– Não é, né?
Então, senhor “veja bem”, eu tô há três horas te ouvindo falar um monte de
abobrinha. Eu nunca pensei que você fosse tão mal educado. Um moço sério,
calado. Não entendi nada, por que você me chamou aqui, o que que eu te fiz?
– Não! Você
não fez nada. É que você... Você é uma em um milhão. Todo mundo passa a vida
inteira sem poder aproveitar. Ninguém aproveita nada. Só você aproveita tudo,
consegue tudo, leva tudo. A gente não fica com nada. É chato. A gente te olha e
parece que não tem nada.
– Isso é
inveja. Só que em vez de dizer isso de uma vez você tá aí enrolando, querendo
dizer não sei o quê.
– É que não
é só inveja, caramba. Não é possível. Você não percebe? Olha o que você causa
na gente. Não é possível que você não percebe isso. Olha como você espanta todo
mundo. Todo mundo te olha e fica com medo. É isso, medo. Você dá medo nas
pessoas. Você é tão bonita que dá medo. Você chega e todo mundo esquece do
resto. Todo mundo larga aquilo que tava fazendo. Todo mundo começa a reparar em
você, no que você tá fazendo. Todo mundo fica tentando adivinhar o que você
está pensando, o que você vai fazer. Todo mundo imagina como é a sua vida, como
é que você passa o dia, se passa alguma dificuldade, se fica chateada de vez em
quando, se chora, se fica com frio, se sente dor de cabeça. Tudo pra você deve
ser fácil. Você deve ganhar presentes, ser paquerada todo dia. É só você pedir
que te dão tudo. É só você querer e pronto. Todo mundo te dá tudo, te dá o
mundo. Sua vida deve ser fácil, tudo é simples, tudo é fácil, tranquilo. Tudo
pra você é fácil. Pra gente é tudo sempre tão difícil. Eu fico aqui, falando
isso, tendo vergonha de falar com você. Eu não sei mais o que eu quero falar. Você
fica aí, sem se mexer, eu não sei o que você tá pensando. Eu nunca sei nada de
você. Você só fica aí. Você só fica...
Eu tinha
falando demais. Eu precisava mesmo parar. Mas não desse jeito, de repente. Sem
palavras, sem fôlego. O sol já estava se pondo, mas eu suava sem parar. Desfiz o nó da gravata e fiquei em pé.
Queria ir pra fora, fumar um cigarro. Quando me virei pra sair, ela pergunta:
– Termina o
que você tava falando. Você acha que eu fico como?
– Foi isso
que eu pensei em te perguntar.
– Nem lembro
mais a sua pergunta. O que que foi mesmo?
– Eu queria
saber se você tem ideia do quanto é bonita. Queria saber se você se dá conta dessa
coisa, dessa reação que você desperta nas pessoas.
– Acho que
as pessoas têm inveja de mim. Só isso.
Ela se levantou
da cadeira. Ficamos em pé, um na frente do outro, parados por alguns instantes.
O salão já estava bem menos cheio do que quando começamos nossa conversa. Ela pegou
a bolsa e deu um passo em direção à porta. Alcancei seu braço e fiz uma última
pergunta.
– Você não
percebe o quanto é linda?
– Você só
disse isso desde que eu cheguei aqui.
– Você é tão
bonita que chega a doer, sabia?
– Tô indo
embora.
Dei tchau.
Ela me olhou de canto de olho, ajeitou a bolsa no ombro e só respondeu – Tchau.
Queria ter
pedido um beijo pra ela.
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