23 de outubro de 2012

NÃO! A CULPA NÃO É MINHA!



A economia brasileira oscilou um bocado no século XX. Cresceu muito em alguns momentos e despencou em outros, principalmente no final.

Daí vieram os anos 2000 e o Brasil voltou a crescer. E bastante. O desemprego começou a cair. Muitos conseguiram o seu primeiro emprego formal nessa época.

Ao mesmo tempo, a taxa de natalidade do país diminui ano a ano. O Brasil deixou de ser um país de jovens e crianças. Os adultos viraram maioria.

É uma situação interessante. Nunca em toda a sua história o Brasil teve tanta gente trabalhando. E trabalhando em boas condições, com remuneração digna, estável.

Resultado: boa parte população passou a ter condições de investir. Além da tradicional poupança, muitos começaram também a juntar uma graninha para, enfim, garantir sua casa própria.

Esse foi o primeiro problema. O pessoal começou a querer sair do aluguel, ter independência. Só que todo mundo teve a mesma ideia. As casas no bairro em que moravam estavam mais caras do que 10 anos atrás. Muito mais caras.

O jeito foi pesquisar em outros bairros, mais afastados. Vai ficar um pouco mais longe do trabalho e da faculdade, mas tudo bem. Vai demorar mais pra chegar em casa à noite, mas tudo bem. Vai ter que gastar mais tempo pra passear aos fins-de-semana e para visitar os parentes, mas tudo bem. Arrumar vaga na única creche da região será difícil, mas tudo bem.

Tudo bem?

Não, não está tudo bem. Desse jeito a qualidade de vida vai embora. Todo o tempo livre será perdido entre metrô e filas de ônibus.

Mas o que dá pra fazer? Vamos estudar mais, trabalhar mais, produzir mais. Quem sabe assim passamos a ganhar melhor e daí conseguimos uma casa mais bem localizada?

Ainda não foi dessa vez. Todo mundo teve a mesma ideia e os preços explodiram. Seu salário triplicou, mas aquele apartamento simpático de dois quartos no Tatuapé que você viu há alguns anos tá custando meio milhão de reais.

Meio milhão. É muito dinheiro.

O jeito é se conformar. Ficar em um bairro mais longe nem é tão ruim. A vila é tranquila, pessoal trabalhador. Ninguém nunca soube de um assalto na região e a feira de domingo é ótima.

O chato é o metrô lotado. Na ida e na volta. Não tem horário bom, tá sempre cheio, tenso. O pessoal entra empurrando.

A mulher sente mais, é mais frágil. Teve aquela vez em que ela foi empurrada pela multidão e torceu o pé quando as portas do metrô se abriram.

O corpo tava quente, a dor não incomodou na hora. Deu tempo de chegar à estação. Lá ela tinha ainda que pegar mais um ônibus até em casa. E esperou dois, três ônibus na fila, até conseguir entrar no próximo.

No trajeto do ônibus ela deu sorte, conseguiu um lugar pra sentar uns 15 minutos depois de embarcar. Já na cadeira, o pé começou a doer. O corpo esfriou, o resultado foi imediato. Sentia o tornozelo latejar, mas dava pra suportar. Mais meia hora e já estaria em casa.

Na hora de descer, um susto. O degrau do ônibus é alto, tem um buraco na calçada. O pé que estava doendo não aguenta o esforço e torce mais uma vez na hora de pisar no chão.

A dor a essa altura já estava insuportável. Ela sentia o pé inchado, o sapato apertado.

O caminho de meio quarteirão até o prédio de COHAB parece interminável. Mas ela consegue chegar no apartamento com a ajuda do porteiro. Cansada e morta de fome, ela precisa esperar o marido chegar para ajudá-la.

Quando ele chega, às 8 da noite, se assusta com o inchaço do pé da mulher. Tem que ir pro hospital. O mais próximo é uns 5 km dali. Precisam pegar dois ônibus até lá.

Vamos de táxi. Ele telefona no ponto da rua de cima. Naquela hora ninguém mais atende, só em horário comercial. Daí ele tenta o rádio-táxi e a atendente responde que não tem nenhum carro por aquela região da cidade. Não compensa pro motorista ir até lá e fazer só uma corrida.

Não tem mais o que fazer. Precisamos de uma carona. Vai até o porteiro, vê se conhece alguém. Alívio. Um vizinho, cara firmeza, topa levá-los ao pronto-socorro.

Depois de anestesiada, o pé dela é enfaixado. Quando estão voltando de táxi (perto do hospital havia um ponto 24hs), ele decide: precisa de um carro. A sensação de impotência naquelas últimas horas, a dor e o desespero no rosto da mulher, tudo aquilo mexeu demais com ele.

Já estava na hora, afinal. Ele tá com 30 anos e um salário razoável. Por que não?

Dizem que o governo tornou as coisas mais fáceis, qualquer um podia comprar um carro no Brasil. Mas ele percebeu que se parcelasse em 60 vezes daria pra pagar quase duas vezes o preço. Aliás, que preço, hein? 30 mil reais por um carro pequeno, comum.

Mas foi esse o jeito. Diante das circunstâncias, não ter o carro é pior do que gastar com ele. Foi lá e comprou. Ter uma caranga facilitaria, inclusive, naqueles dias em que ele tem pós-graduação e volta pra casa mais tarde.

Aliás, outro dia na aula o professor falou que o ideal seria que as pessoas optassem pelo transporte público. Se a frota de carros continuar crescendo, o trânsito só vai piorar.

Trânsito. Ele começou a pensar com seus botões. Ele e a mulher moram longe de tudo, mas não deveriam ter carro porque o carro deles faz o trânsito piorar. E não é só o trânsito. Um carro a mais na rua gera mais poluição e aumenta o risco de acidentes.

Eles poderiam morar num bairro melhor e não precisar do carro, claro. Só que é tudo caro demais. Muito mais do que eles conseguem pagar.

Mas é a lei do mercado. Oferta e demanda, né?

Já sei! E se a oferta de imóveis aumentasse? Não reduziria os preços?

Nem pensar! Ele se lembrou daquela aula de urbanismo. O texto falava que o grande problema é a verticalização dos bairros. Casas térreas, históricas, sendo demolidas para dar lugar a prédios e condomínios. Uma concentração absurda de gente, criando ainda mais trânsito, mais barulho, poluição, trânsito, filas no supermercado, lotação nas lojas, etc. Absurdo!

Temos aí uma conclusão bastante curiosa. As pessoas têm a oportunidade de subir de vida, trabalhando e estudando, mas a opinião pública diz que o aumento do padrão de vida delas é responsável pela catástrofe urbana.

Não pode construir nada nos bairros centrais, porque isso aumenta a verticalização dessas áreas e a concentração de pessoas. Essas pessoas devem morar longe do centro. Mas elas não podem ter carro também, pra não piorar o trânsito.

Portanto, o governo deve agir em duas frentes: diminuir o acesso ao crédito (onde já se viu parcelar carro em 60 vezes?) e impedir a construção de prédios residenciais em regiões bem localizadas (esse pessoal da periferia que fique por lá).

Na minha terra, isso se chama eugenismo. Ou gulag.

Faz 6 anos que vim pra São Paulo. Por enquanto, ao invés de Paulicéia, só encontrei Piratininga.

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